A gente lê: O Evangelho Segundo Jesus Cristo
Aviso: vou subverter um pouco a citação abaixo, senão vocês não conseguem entendê-la fora do contexto. As frases em negrito são as falas do Anjo, o restante são as falas de Maria.
"Então Jesus é filho de mim e do Senhor, Mulher, que falta de educação, deves ter cuidado com as hierarquias, com as precedências, do Senhor e de mim é que deverias dizer, Do Senhor e de ti, Não, do Senhor e de ti"É dessa maneira que Maria fica sabendo por um anjo que seu filho Jesus tem algo a mais do que os outros. Bom, pelo menos na versão de José Saramago, que resolveu dar um toque ácido (e bem mais divertido) da Bíblia em O Evangelho Segundo Jesus Cristo.
A obra começa quando um mendigo bem sombrio anuncia a José a gravidez de Maria.
Durante um bom tempo, o enfoque do livro será no pobre casal sem qualquer sintonia, que será obrigado a fazer uma viagem de Nazaré a Belém a mando do governo romano. É ali que, em meio à felicidade do nascimento do primogênito, José cometerá um grande pecado mesmo sem saber: deixará de salvar outras crianças para livrar seu filho da morte. O fato vai atormentá-lo até o fim e, quando é crucificado inocentemente, entra em cena seu filho, um adolescente de 12 ou 13 anos.
Jesus herdará a culpa de José e, revoltado, sairá de casa. Ele começará a trabalhar como pastor, adivinhem para quem? Para o misterioso mendigo que havia visitado seus pais lá no começo da história. Até que um dia no deserto, o adolescente rebelde encontra Deus, que o prometerá fama e glória em troca de um grande sacrifício.
Vocês devem estar se perguntando se essa é uma história religiosa. Bom, eu diria que não, que é uma história sobre a religião. Entendem a diferença? Acho que Saramago - que, como sabemos, era ateu - quis pensar sobre o papel que deus cumpre no comportamento e moral das pessoas.
E aí já aviso logo que os mais convictos devem se ofender com as "heresias" do livro. Jesus, por exemplo, é cheio de defeitos, tem uma relação bem carnal com Maria Madalena e sentimentos conflitantes para com o Pai.
Falando nele, Deus aparece nesse evangelho como um ser "medonho" (usando um dos termos escolhidos pelo próprio autor). Em um dos trechos mais fenomenais da obra, ele explicará a Jesus o motivo pelo qual decidiu ter um filho humano: territorialidade. Pois é, minha gente, de acordo com Saramago, o Todo Poderoso simplesmente queria ser popular - mesmo que isso custasse milhares e milhares de vida. Aliás, até mesmo o Diabo tenta convencer Deus a desistir desse projeto todo.
Bom, como toda obra de Saramago, O Evangelho Segundo Jesus Cristo paira naquele nível além de qualquer adjetivo que eu venha a usar aqui. Mas..... confesso que foi o livro do autor que mais tive dificuldade de ler até hoje.
Primeiro porque eu não tenho muita atração por temas bíblicos, segundo porque não conheço tanto do evangelho original para poder fazer a comparação. Outra coisa, e essa é uma grande coincidência, é que até então, eu só havia lido o autor nas férias. Pode parecer besteira, mas, quem conhece o português (e quem não conhecer basta ler a citação que coloquei no início do texto) sabe que ele desprezava pontos, vírgulas e travessões... E aí que conseguir não me perder no bololô de palavras enquanto fazia as minhas muitas baldeações diárias foi uma missão não cumprida.
Já que comecei o post com um trecho genial, escolhi outro tão maravilhoso quanto para encerrá-lo. Nele, Jesus pergunta a Deus se ele realmente sabe de tudo. O Senhor então responde:
"Até um certo ponto, só até um certo ponto, Que ponto, O ponto em que começa a ser interessante fazer de conta que ignoro"
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