Apesar de ser considerada a maior escritora brasileira de todos os tempos, Clarice Lispector nem sempre foi, bem, brasileira. Nascida na hoje cidade ucraniana de Tchetchelnik em 1920, a escritora desembarcou com menos de dois anos em Maceió, onde seus pais trocaram seu nome estrangeiro Haia por Clarice.
Por causa da guerra e do desejo de se casar, quando a escritora completou 21 anos - idade mínima para requerer a nacionalidade brasileira -, ela escreveu uma carta direto para o presidente Getúlio Vargas em 3 de junho de 1942. Em 12 de janeiro de 1943, ela virou tupiniquim.
Tomei conhecimento desta e de outras cartas maravilhosas pelo maravilhoso projeto do Instituo Moreira Salles chamado Correio IMS, que minha amiga Karis me apresentou <3
Rio de Janeiro, 3 de junho de 1942
Senhor presidente Getúlio Vargas,
Quem lhe escreve é uma jornalista, ex-redatora da Agência Nacional (Departamento de Imprensa e Propaganda), atualmente n’A Noite, acadêmica da Faculdade Nacional de Direito e, casualmente, russa também.
Uma russa de 21 anos de idade e que está no Brasil há 21 anos menos alguns meses. Que não conhece uma só palavra de russo mas que pensa, fala, escreve e age em português, fazendo disso sua profissão e nisso pousando todos os projetos do seu futuro, próximo ou longínquo. Que não tem pai nem mãe – o primeiro, assim como as irmãs da signatária, brasileiro naturalizado – e que por isso não se sente de modo algum presa ao país de onde veio, nem sequer por ouvir relatos sobre ele. Que deseja casar-se com brasileiro e ter filhos brasileiros. Que, se fosse obrigada a voltar à Rússia, lá se sentiria irremediavelmente estrangeira, sem amigos, sem profissão, sem esperanças.
Senhor presidente. Não pretendo afirmar que tenho prestado grandes serviços à Nação – requisito que poderia alegar para ter direito de pedir a vossa excelência a dispensa de um ano de prazo, necessário a minha naturalização. Sou jovem e, salvo em ato de heroísmo, não poderia ter servido ao Brasil senão fragilmente. Demonstrei minha ligação com esta terra e meu desejo de servi-la, cooperando com o DIP, por meio de reportagens e artigos, distribuídos aos jornais do Rio e dos Estados, na divulgação e na propaganda do governo de vossa excelência. E, de um modo geral, trabalhando na imprensa diária, o grande elemento de aproximação entre governo e povo.
Como jornalista, tomei parte em comemorações das grandes datas nacionais, participei da inauguração de inúmeras obras iniciadas por vossa excelência, e estive mesmo ao lado de vossa excelência mais de uma vez, sendo que a última em lº de maio de 1941, Dia do Trabalho.
Se trago a vossa excelência o resumo dos meus trabalhos jornalísticos não é para pedir-lhe, como recompensa, o direito de ser brasileira. Prestei esses serviços espontânea e naturalmente, e nem poderia deixar de executá-los. Se neles falo é para atestar que já sou brasileira.
Posso apresentar provas materiais de tudo o que afirmo. Infelizmente, o que não posso provar materialmente – e que, no entanto, é o que mais importa – é que tudo que fiz tinha como núcleo minha real união com o país e que não possuo, nem elegeria, outra pátria senão o Brasil.
Senhor presidente. Tomo a liberdade de solicitar a vossa excelência a dispensa do prazo de um ano, que se deve seguir ao processo que atualmente transita pelo Ministério da Justiça, com todos os requisitos satisfeitos. Poderei trabalhar, formar-me, fazer os indispensáveis projetos para o futuro, com segurança e estabilidade. A assinatura de vossa excelência tornará de direito uma situação de fato. Creia-me, senhor presidente, ela alargará minha vida. E um dia saberei provar que não a usei inutilmente.
Clarice Lispector
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