Quando a bielorrussa (nascida na Ucrânia) Svetlana Aleksiévitch ganhou o Nobel de Literatura no ano passado, torci o nariz mesmo sem conhecê-la (afinal, quem não gosta de torcer o nariz aleatoriamente?). Fiquei dizendo que certamente a escritora tinha conquistado o prêmio porque a academia suíça queria puxar o saco dos trinta anos do desastre de Tchernóbil.
Daí Vozes de Tchernóbil foi publicado no Brasil, comprei e li. Nossa, como mordi a língua! A obra é maravilhosa e o texto de Svetlana, nem se fala.
Então a Nobel foi a mais importante convidada da Flip (a feira literária de Paraty) deste ano. Eu não fui, mas, claro, acompanhei muito do que saiu sobre Svetlana, inclusive a palestra que ela deu, que pode ser assistida na íntegra aqui, mas da qual selecionei os melhores pontos (e foram muitos) aí embaixo.
Como o evento foi transmitido com tradução simultânea, eu editei as frases para tirar aquele monte de traço de oralidade que julguei serem mais da tradutora do que da autora. Mas as ideias, tentei manter ;)
- Sobre ser uma 'mulher-ouvido' (como o mediador da mesa, Paulo Roberto Pires, definiu a técnica de Svetlana de tomar depoimentos)
"Eu fui criada numa aldeia na Bielorrússia onde só viviam mulheres, porque não tinha homem após a guerra. Meus pais eram professores, e, em casa, tinha livros, mas eu sempre procurei ir para as ruas, porque o que as mulheres conversavam era tão mais forte do que o que era escrito nos livros. Isso me marcou pro resto da minha vida."
"Quando a pessoa conversa com um amigo, um parente próximo, este se expressa livremente. Eu sempre busquei isso. Essa vida viva ainda não é lapidada, não é formada, é sem propaganda, sem autocrítica."
"Os meus livros são testemunhos meus. Ouvir é um aspecto tradicional da nossa vida e eu desenvolvi um pouquinho mais esse ato de ouvir e de repassar o que eu ouvi."
"Existem duas verdades: uma a verdade da época, a outra é a verdade do ser humano. Eu busco essa verdade do ser humano."
- Sobre ter preferido a literatura ao jornalismo
"Eu trabalhei durante dez anos como jornalista, mas os jornais refletem principalmente informações banais, tudo supérfluo. Quando você busca algo profundo, isso é um contato pessoal, então sempre me senti muito limitada nessa área de jornalismo."
- Sobre como estabelecer a relação de confiança com os entrevistados
"Eu sempre valorizo essa entonação de amizade. Não é porque eu recebi um prêmio... Eu chego como um ser humano, me aproximo de outro ser humano, que pode saber mais daquilo que me interessa do que eu. Isso não é entrevista, é uma conversa sobre a vida."
- O porquê da tragédia nuclear de Tchernóbil ter sido tão marcante
"Quem sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, quem voltou dos campos de concentração, sabia que a vida continuava. Mas quando eu estava andando pela área contaminada pela radiação de Tchernóbil, que foi abandonada, era claro para mim que nunca mais o ser humano iria voltar ali, que os radionuclídeos demorariam séculos e séculos para serem dissolvidos."
"E também foi violado o termo inimigo x amigo. No caso da tragédia de Tchernóbil, você não tinha inimigo, você não tinha russo,
ucraniano, francês... Você só via pessoas que podem sumir."
"A humanidade não estava pronta para aquilo que aconteceu."
- As lições que podemos tirar dessa 'era de catástrofes'
"A humanidade tomou um lugar errado dentro da natureza, eu acredito que é muita ingenuidade usar a força contra a natureza. Eu acho que os índios aqui no Brasil conhecem melhor a natureza do que nós, mesmo com a nossa tecnologia. Eu acho que o mundo precisa de uma filosofia de vida nova, porque é claro que esse progresso, que nós batalhamos tanto para conquistar, vai levar a nossa autodestruição. Eu não sou cientista, mas eu tenho medo."
- Sobre o fato dos livros de Svetlana, apesar de tudo, falarem também sobre amor
"A vida tem muita tragédia, mas, ao mesmo tempo, a vida tem crianças, a vida tem flores, a vida tem amor, a vida tem pôr do sol. Eu acho que eu tenho que passar essa beleza que nós temos nas nossas vidas naquilo que eu faço."
"Nos meus livros, os personagens falam de amor mesmo convivendo com a tragédia. Se elas não falassem de amor, você não conseguiria ler nem um parágrafo. São mulheres que amavam e que demonstraram forças surreais. Essa heroínas do meus livro foram acima de todas as ideias que eu tinha de literatura antes de conversar com elas."
"A única saída para nós é o amor mesmo, porque amor cura. O mundo não vai ser salvo pelo homem racional, mas pelo homem que tem uma visão bem ampla, que não visa somente ao progresso."
- Sobre o futuro dos países que pertenciam à URSS
"Eu vivi onze anos fora do meu país, mas eu voltei à minha casa porque a nossa cultura não tem facilidade para se adaptar a outro lugar, a outro mundo. Quando voltei, há dois anos, ficou claro que não há ilusões, que Putín não tem futuro, que Lukashenko (o presidente da Bielorrússia) é o nosso ditador. Não temos mais ilusões."
"Ao longo da minha vida, eu tinha o poder comunista, hoje nós temos outro poder. É um poder totalitário."
"Nós chegamos à conclusão que nós, democratas, fomos derrotados, porque a população quer roupa nova, geladeira nova, máquina de lavar importada, novas comidas, conhecer o mundo... "
"Os bandidos que existiam na Rússia estavam prontos para tomar o poder, mas nós, democratas, não conseguimos. Nós estávamos imaginando a liberdade, mas ninguém pensou que você tem que lutar pela liberdade, defender a liberdade, não somente fazer manifestação."
"A liberdade é um caminho longo, o ser humano que a vida inteira viveu num certo campo, ele ganha a liberdade, ele se torna livre, e daí? O campo acabou, foram abertas as portas, saímos, mas nós não sabemos o que significa a liberdade, não existem seres livres. O conflito com o poder não é tão trágico quanto o conflito com o povo."
- Processo de feitura do livro
"Meu processo de escrita é longo, porque eu me encontro com milhões de pessoas, eu gravo tudo (no papel, você não consegue expressar a pessoa). Quando tenho essa coleção de páginas, de gravações, consigo identificar objetivos, linhas principais. Anos precisam passar para identificar essa linha principal. E, depois, parece um construtor: monto peça por peça e, de repente, tenho a obra completa."
"O principal não é colher material sobre tragédia, tem que identificar um ponto de vista novo, uma visão do outro lado."
"Há muito de intuição, faço essa construção que é de um lado tudo o que foi dito e de outro lado a minha visão. Porque de cem páginas de uma conversa, eu escolho algumas páginas"
"Meus personagens têm que ser com idades diversas, com profissões diversas, de experiências de vida diversas."
"Eu tenho um princípio: cada ser humano tem que gritar a sua verdade."
- Próximo projeto
"Não vou conseguir escrever mais sobre a guerra, isso com certeza. Não sei como sobrevivi a essas experiências, mas eu não tenho nenhuma proteção mais, já sofri muito."
"Eu estou buscando novas ideias e eu achei um tema sobre o amor, amor da parte das mulheres, dos homens, mas também vou dizer que há uma certa guerra. Não posso dizer que esse assunto é muito fácil de se tratar também. Já estou escrevendo há muito tempo."
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