Os discursos que Chimamanda Ngozi Adichie tem feito por aí já viraram história - até Beyoncé usou trechos de Sejamos Todos Feministas (falei sobre ele aqui) em sua música Flawless. Mas o que achei lendo Americanah é que os romances da escritora nigeriana, por mais que sejam ficção, também têm um alto poder de demolição. Sim, porque seja enquanto está falando em uma conferência ou enquanto está escrevendo, Chimamanda vai colocar sua cabeça para dar piruetas.
Publicado em 2013, Americanah começa descrevendo a ida da personagem principal, Ifemelu, a um cabeleireiro para trançar seu cabelo afro. Ela está nos Estados Unidos há quinze anos, mas vai largar o blog bem-sucedido e o namorado para voltar para o país natal, a Nigéria. Agora me respondam rápido: quando é que vocês viram uma personagem cuidando de seu afro? Aliás, quando é que você viram uma negra africana ser a protagonista da história? (Um estudo do perfil dos personagens brasileiros constatou que dos 258 livros analisados, apenas três tinham protagonistas mulheres e negras).
Voltanto à trama, ela será em boa parte contada em flashbacks que explicarão as diversas etapas da vida de Ifemelu. Até uns vinte anos, a personagem viveu feliz e contente na Nigéria, com uma boa situação financeira (pelo menos até o pai ser demitido de um cargo público), um namorado galã e a oportunidade de estudar em uma universidade legal. Só que a instituição vivia em greve e, por isso, a moça se inscreve (e ganha) uma bolsa de estudos para estudar nos Estados Unidos.
Percebam que Chimamanda não coloca nenhum africano subnutrido se atirando no mar para chegar à Europa. O que ela cria são jovens lendo Sidney Sheldon, ouvindo Toni Braxton e que, por causa da instabilidade política (não da pobreza), escampam do país para buscar uma formação, "apenas famintas por escolha e certeza",
Chegando na terra do Tio Sam, Ifemulu descobrirá algo até então inexistente para ela: a questão racial (Chimamanda usa o termo 'raça', não etnia) e, então, a personagem abre um blog onde tentará explicar os tabus dos negros americanos para os negros não americanos.
A partir daí, os capítulos do livro serão quase todos encerrados com trechos de posts fictícios tão sensacionais como este que copiei abaixo:
"Raça não é genótipo; é fenótipo. A raça importa por causa do racismo. E o racismo é absurdo porque gira em torno da aparência. Não do sangue que corre em suas veias. Gira em torno do tom da sua pele, do formato do seu nariz, dos cachos do seu cabelo."
Se você é daqueles que acham que a gente vive numa democracia racial, já vou logo avisando que é possível que se sinta incomodado em alguns momentos da leitura, porque provavelmente se reconhecerá em alguns maus exemplos. (Ou vai dizer que você nunca usou termos como "racismo invertido" ou "o discriminação está na cabeça"?) Relaxe e aprenda.
Quem ler as descrições da contracapa do livro terá a impressão de que Americanah é uma história de amor. Até pode ser, já que a trajetória de Obinze - aquele namorado que Ifemelu deixou na Nigéria - também será extremamente importante para a obra. Mas esse enfoque do enredo foi o que menos gostei e até me irritou em certos momentos.
Outra coisa é que, desde que terminei o livro, ando buscando de maneira meio frenética entrevistas com a autora, porque fiquei com muita curiosidade para saber o quanto de Chimamanda é Ifemelu. Pelo que pesquisei, aos 19 anos, a escritora também deixou o país por uma bolsa de estudos nos Estados Unidos, permaneceu lá por quatro anos (muito menos que a personagem ), estranhou a questão da raça e voltou para o país natal. Hoje em dia, Chimamanda se divide entre América e África. Filha de um pai professor, ela cresceu no campus da Universidade da Nigéria, característica que quem 'herdou' foi Obinze. Então, acho que, no fundo Americanah, é uma estória com uns traços de memória.
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